Por Neuri Freitas, presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe) e da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece)
O direito ao saneamento é indispensável à sobrevivência humana. Contudo, o acesso a esse direito fundamental de forma ampla e indistinta por toda a população ainda não é uma realidade no Brasil, o que evidencia a imprescindível atuação estatal para definir, direcionar e agir em proveito do saneamento básico, consoante os pilares de uma infraestrutura social, econômica e ambientalmente sustentável. Em novembro de 2020, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou estudos que demonstram a necessidade imperiosa de investimentos públicos para universalizar o saneamento básico, frente às carências nas diversas regiões do país. A mesma pesquisa aponta que mais de 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada.
No Brasil, historicamente, a qualidade e o acesso aos serviços de saneamento distribuem-se de forma desigual pelo território nacional. Em 2019, as regiões Sudeste e Centro-Oeste apresentavam os melhores índices de atendimento com rede de água tratada, respectivamente, 96,1% e 93% da população urbana. Já na Região Norte é de apenas 57,5%.
As cidades que possuem maior concentração urbana também possuem os maiores índices de assentamentos subnormais. Em 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou o estudo "Aglomerados Subnormais: classificação preliminar e informações de saúde para o enfrentamento à Covid-19", que contou 13.151 favelas em 734 municípios com 5.127.747 milhões de domicílios ocupados. São mais de 20 milhões de pessoas abrigadas em áreas consideradas irregulares, boa parte delas sem acesso a água e esgotamento sanitário. A essa realidade somam-se cerca de 68 milhões de pessoas que moram em 4.530 municípios de perfil econômico rural e menos de 100 mil habitantes que têm o saneamento inadequado. A ausência de saneamento é ainda mais marcante nos municípios com até 20 mil habitantes (SNIS, 2019).
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Elaborada durante o governo Bolsonaro, a Lei nº 14.026/2020 foi apresentada como a grande solução para dar conta desse desafio. Todavia, deixou mais lacunas do que respostas exequíveis para a provisão de atendimento à população carente das periferias, ao privilegiar a privatização do saneamento básico como a única solução para os investimentos necessários para o atendimento às periferias e às áreas de assentamentos precários das cidades.
Porque a Lei 14.026/2020 não induz à universalização? A resposta pode ser encontrada nos vazios dessa lei, como, por exemplo, a elaboração dos planos de saneamento básico que não contemplam obrigatoriedade para áreas rurais ou de assentamentos precários, bem como o estabelecimento de metas e indicadores de desempenho e mecanismos de aferição de resultados, a serem obrigatoriamente observados na execução dos serviços prestados de forma direta ou por concessão.
As controvérsias da narrativa utilizada para aprovação da lei mostram-se ao estabelecer em seu artigo 52 que os planos de saneamento deverão contemplar ações de saneamento básico em núcleos urbanos informais ocupados por populações de baixa renda, quando estes forem consolidados e não se encontrarem em situação de risco. O parágrafo único do mesmo dispositivo autoriza que os estudos de fundamentação de concessões e privatizações sejam considerados como planos de saneamento básico, desde que atendam aos requisitos legais. Desta forma, desobriga-se ao concessionário privado a realização de investimentos nas áreas de assentamentos informais. Essa injusta discriminação social foi aplicada pela modelagem de concessão idealizada pelo BNDES no estado do Rio de Janeiro em que a população a ser atendida não alcança sequer 2/3 da população total das quatro áreas de concessões outorgadas por muitos bilhões de reais.
É preciso ter os pés no chão, pois os gargalos relacionados à habitação e ao saneamento básico não serão resolvidos em um contexto imediato ou mesmo até 2033, prazo estabelecido pela Lei 14.026/20. As questões relacionadas aos processos de propriedade da terra e de moradia digna para dezenas de milhões de pessoas em um país com expressivas desigualdades regionais, seculares até, não são questões simples que se resolvam por meio de uma data imposta dentro de um artigo de lei ordinária.
Para levar saneamento à população de baixa renda nas favelas e ocupações informais é absolutamente necessário que o estado brasileiro estabeleça políticas públicas integradas, articuladas com investimentos de recursos financeiros de diversas fontes e ampla capacidade de fiscalização. O controle de uso e ocupação do solo urbano está sujeito ao jogo de interesses em que o capital privado impõe a lógica de financeirização da terra ampliando a gentrificação que impulsiona a expansão dos assentamentos informais, restando aos mais pobres a árdua luta por moradia digna e acesso à infraestrutura urbana, inclusive a de saneamento. Cabe às prefeituras a regularização desses assentamentos que, dada à sua complexidade, não os inclui no planejamento e consequentemente desobriga ao setor privado de atendê-los, portanto, mantendo a situação atual de exclusão e de injustiça social para dezenas de milhões de pessoas e desmontando a narrativa utilizada para justificar a entrega do setor de saneamento para o setor privado. O estado torna-se negligente com suas obrigações fundamentais ao desobrigar que concessionários de serviços públicos atendam de forma igual e justa a todas as pessoas, seja qual for a sua origem social e local de moradia.
Quando a Lei nº 14.026/2020 autoriza que os estudos de fundamentação de concessões e privatizações substituam os planos de saneamento, na prática privilegia tão somente a lógica de mercado, em que os assentamentos precários e as áreas rurais sejam desconsiderados em planos de saneamento e de concessões. Aprofundam-se as injustiças sociais e torna-se cada vez mais distante o acesso ao saneamento para aqueles que mais o necessitam.
O estado brasileiro deve atuar sobre essas condições com regramentos mais claros e a sociedade deve repelir os discursos vazios de humanidade daqueles que sobretudo fazem prevalecer os interesses econômicos acima do direito fundamental de acesso à água e ao saneamento, embora ainda não reconhecido explicitamente como garantia constitucional
A Lei 14.026/2020 incentiva a criação de um oligopólio privado de abrangência nacional para os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário e, sobretudo, induz a aplicação de recursos privados onde há menor necessidade de investimento e melhor garantia de lucro, ao invés de induzir investimentos em áreas que precisam da oferta de saneamento com tarifas acessíveis, que melhora os indicadores de saúde pública.
Ao negar a garantia de atendimento à população socialmente mais vulnerável nas áreas carentes desses serviços, notadamente os pequenos municípios, as áreas rurais e as periferias das grandes cidades, a lei está subjugada ao viés da maximização do lucro das empresas privadas mostrando-se incompatível para reduzir a vulnerabilidade social dessa população por meio da oferta do direito fundamental à água boa e ao saneamento adequado.
O que o setor de saneamento necessita é de recursos da união, com taxas subsidiadas por órgãos financiadores. É imprescindível reforçar a atuação dos Bancos Regionais de Desenvolvimento e da Caixa Econômica Federal na concessão de financiamentos com recursos de FGTS, FAT e dos fundos constitucionais (a exemplo do FNE - Fundo Constitucional do Nordeste), visando a ampliação destes financiamentos também a juros subsidiados, alavancando assim os investimentos necessários ao setor de saneamento básico e ampliando o montante financiado, permitindo menores contrapartidas aos prestadores, com benefícios na modicidade tarifária.
Um ponto importante é que os leilões recentes do setor estão sendo subsidiados com dinheiro público, não vem capital novo do setor privado, como era a ideia inicial dessa lei. E as outorgas pagas vão para a tarifa, desta forma, a tarifa fica mais alta como uma forma de financiamento dos estados.
Por isso, propomos estabelecer mecanismos que restrinjam o uso de recursos financeiros obtidos com outorgas oriundas de concessões dos serviços de saneamento básico ao próprio setor de saneamento, redirecionando tais recursos para um Fundo Nacional de Saneamento, ou fundos estaduais, regionais ou municipais de saneamento básico eventualmente existentes nas área de abrangência da concessão, com o objetivo específico de financiar ações de investimentos em áreas menos favorecidas em termos socioeconômicos e efetiva garantia da universalização dos serviços.
A Aesbe sempre enfatiza que é necessário unir esforços entre o setor público e o privado para alcançarmos a universalização. Ao longo dos anos, as companhias estaduais celebraram exitosos contratos de Parcerias Públicos-Privadas (PPPs), que garantem a universalização de diversos estados brasileiros, como, por exemplo, a Embasa, Cagece, Compesa, Sanesul e Sabesp.
A Cagece, companhia que presido, realizou, em setembro deste ano, um leilão na B3 que visa à universalização do saneamento no Ceará. O projeto vai ampliar os serviços de esgotamento sanitário na Região Metropolitana de Fortaleza e do Cariri até 2033, elevando o índice de cobertura para 90%. As PPPs já demonstram há muito tempo ser uma ferramenta importante para chegarmos à universalização, mesmo antes do novo marco.
Inclusive, reforçamos de forma veemente a necessidade de revisão da limitação para constituição de PPPs acima de 25% instituído pelo novo marco. Propomos o fortalecimento da conjugação do capital público e do capital privado, através das PPPs nos projetos de infraestrutura de saneamento básico em que esse modelo seja aplicável, no intuito de dar celeridade à execução dos investimentos necessários a universalização dos serviços.
As maiores parceiras do setor privado são as companhias estaduais! Não queremos mudar isso. Porém, a nova legislação inviabiliza a atuação do setor público, e é esse o nosso questionamento!
Portanto, readequações nos Decretos da Lei 14.026/2020 são necessárias e urgentes para que a universalização dos serviços de saneamento seja uma realidade em 2033. Caso contrário, o atingimento da meta é irreal e ilusório.