ERRATA DE 70 ANOS

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Os passos de Alaíde Costa, uma das mães da Bossa Nova.

Johnnie Walker/Divulgação

Erramos.

E dessa vez não foi em uma só frase ou matéria. Não foi um erro que aconteceu em um só dia, semana, mês ou ano. E nem uma falha cometida por uma única pessoa. Este erro é de todos nós.

A Bossa Nova passou quase setenta anos sabendo de cor quem eram seus pais, mas nunca compartilhou a história de uma das suas mães: Alaíde Costa.

Aliás, você conhece Alaíde Costa?

Se não conhece, vamos apresentar a você: Alaíde é uma das maiores cantoras brasileiras.

Se na vida uma pessoa dá 150 milhões de passos, dá para dizer que grande parte dos passos dados por Alaíde foram ao som da Bossa Nova. Aliás, ela esteve presente no nascimento desse movimento e até hoje anda ao seu lado.

São mais de 20 álbuns. Centenas de parcerias. Milhares de shows. E milhões de empecilhos que fariam qualquer um mudar de direção.

Mas Alaíde sempre acreditou que seus passos a levariam além.

"QUANDO ESCUTAVA QUE PRETOS SÓ PODIAM FAZER SAMBA, ALAÍDE FAZIA POUCO DISSO E SEGUIA SEU CAMINHO"

Se escutava que pretos só podiam fazer samba, Alaíde fazia pouco disso e seguia seu caminho.
Se ouvia um não de uma gravadora, dava um jeito de arranjar um sim.
Se não era convidada para tocar nos maiores palcos, tocava em outro lugar.
Se não conseguia o espaço que merecia nos jornais, alcançava pessoas no boca a boca.

Alaíde quebrou barreiras e, na sua caminhada, inspirou gerações.

Tudo começou nos seus primeiros passos. Nascida em 8 de dezembro de 1935, em casa, no bairro do Méier, no Rio de Janeiro, Alaíde é filha de Hermínio Silveira e Manuela Costa Silveira. Seus pais sempre gostaram de escutar músicas no rádio, e sua mãe vivia cantarolando sambas pela casa. Quando seu irmão descobriu que Alaíde tinha talento e gostava de cantar, seus pais e parentes insistiam que cantasse músicas mais animadinhas. Mas não, Alaíde preferia músicas mais calmas e elaboradas.

Seguindo esse caminho, Alaíde começou a participar de programas de calouros. Confiante no seu talento, sempre cantava o que gostava. Por volta de 1952, foi ser babá na casa de uma senhora que, num dia, ao ouvir Alaíde cantarolando, disse: "Você tem uma voz tão bonita. Por que você não vai ao programa do Ary Barroso?" Alaíde gostou da ideia e fez de tudo para decorar a música "Noturno (Em Tempo de Samba)" do Sílvio Caldas. Para isso, como não tinha vitrola, ficava esperando a música tocar na rádio para ir anotando a letra, linha por linha. Com a letra decorada, Alaíde foi ao programa. Magrinha e malvestida, escutou o deboche de Ary Barroso, que disse: "Você vai cantar?". Alaíde respondeu: "Vou cantar Noturno (Em Tempo de Samba)". Ary: "Mas de quem é essa música?" Alaíde: "Custódio Mesquita e Evaldo Ruy". "Ele me olhou torto e disse: 'Vamos ver!'". "Cantei e ele adorou! Me deu a nota máxima e virou meu fã!".

Os fãs de Alaíde foram se ampliando e, em 1955, ela iniciou sua carreira profissional, como crooner do Dancing Avenida, no Rio de Janeiro. O próximo passo era óbvio: gravar algumas músicas. Em 1957, gravou um 78 RPM com "Tarde demais" (Hélio Costa e Lenita Andrade). Ainda nesse ano, lançou mais um 78 RPM com "Conselhos" (Hamilton Costa e Richard Franco) e "Domingo de amor" (Fernando César). Escutar sua voz nesses discos só a incentivou a seguir atrás do que queria.

Os anos passaram e, então, veio a Bossa Nova. Nas pegadas desse movimento, Alaíde tentou a todo custo fazer a música que acreditava. No entanto, pouca gente acreditava nela e, por razões diversas (ao melhor estilo "isso pode atrapalhar as vendas do álbum"), seus dois primeiros discos, "Gosto de Você" e "Cantando Suavemente", mais pareciam discos de rumba do que de Bossa Nova. Alaíde não desistiu do que acreditava e, no seu terceiro LP, "Joia Moderna", de 1961, conseguiu fazer diferente. Mas, para isso, pagou um preço alto. Literalmente. Teve que bancar o disco do próprio bolso. O disco, um de seus preferidos, ficou do jeito que ela queria e foi produzido e arranjado por Baden Powell.

Johnnie Walker/Divulgação

Alaíde seguia, enfim, a passos largos em direção ao que acreditava, mesmo encontrando uma ou outra pedra pelo caminho. Apesar de frequentar todas as reuniões da Bossa Nova e estar presente nos shows iniciais do movimento, em 1962, aconteceu o famoso show de Bossa Nova no Carnegie Hall. Você deve ter lido sobre isso nesse mesmo jornal dias atrás. O que não deve ter lido é que Alaíde sequer foi informada, quem dirá convidada. Muitos dos que participaram desse show sequer faziam parte do movimento. Isso se repetiu algumas vezes. Alaíde foi deixada de fora de muitos dos grandes festivais de Bossa Nova, principalmente os que aconteciam no Rio de Janeiro. Em resumo, a Bossa Nova era a panelinha da qual Alaíde foi excluída.

Seja como for, isso já não faz diferença. Alaíde não ficou datada. Manteve-se andando. Não ficou apenas cantando "Chega de Saudade", "Garota de Ipanema" e "O Barquinho". Alaíde queria um universo mais amplo e conseguiu conquistá-lo. São 70 anos de carreira ininterruptos.

Falando sobre sua carreira, aliás, Alaíde fez muita coisa sozinha, mas outras tantas muito bem acompanhada. Levada por João Gilberto, entrou em contato com os compositores da Bossa Nova. Se não tinha padrinhos no começo da carreira, Alaíde foi ganhando parceiros com seu talento. Ficou amiga de Vinicius, que um dia disse, "Laidinha, abre aquela gaveta, tem um presente para você!". Eram duas letras para as melodias que Alaíde tocava no piano na casa de Vinicius, "Amigo Amado" e "Tudo o que é meu". Alaíde conheceu também Tom Jobim na casa de Vinicius, e do encontro surgiu a canção "Você é Amor". Com Johnny Alf, fazendo uma temporada, recebeu um papelzinho dobrado. Era uma letra para musicar. Alaíde fez a música e surgiu a canção "Meu sonho". Fez parcerias também com Geraldo Vandré, Paulo Alberto Ventura, Haydée Hayblan, João Magalhães e Hermínio Belo de Carvalho.

Nessa época, aconteceu pela primeira vez um show de Bossa Nova em São Paulo, com Sylvia Telles, Elza Soares, Juca Chaves, Norma Bengell, Nara Leão, Oscar Castro-Neves, Carlos Lyra e Geraldo Vandré. Alaíde foi chamada, mas logo percebeu que boa parte dos demais cantores não tinha nada a ver com a Bossa Nova. Seguiu em frente.

Em 1964, apresentou a música "Onde está você" pela primeira vez, e foi aplaudida de pé. A plateia pediu bis, ela voltou e cantou a música mais duas vezes. O que podia ser um salto na carreira acabou sendo uma chateação. Como estava sem gravadora na época, Alaíde não pode gravar um compacto só seu. Então, todo o sucesso (e dinheiro) da música foi dividido igualmente entre os oito artistas do disco do show.

Em 1965, voltou ao Rio de Janeiro para o espetáculo "Recital de Samba", produzido por Guilherme Araújo e dirigido por Ruy Guerra. No elenco, Alaíde Costa, Baden Powell, Oscar Castro-Neves, Dulce Nunes. No mesmo ano, fez diversos shows na boate Cave acompanhada por Baden Powell e Jongo Trio.

"SE NA VIDA UMA PESSOA DÁ 150 MILHÕES DE PASSOS, DÁ PARA DIZER QUE GRANDE PARTE DOS PASSOS DE ALAÍDE FORAM AO SOM DA BOSSA NOVA"

Pouco tempo depois, os passos de Alaíde a levaram para o Teatro Municipal de São Paulo, onde encarou o desafio de fazer o show "Alaíde e Alaúde", acompanhada pelo alaudista Antonio Carlos Barbosa Lima em canções medievais e renascentistas, francesas e inglesas. "Tive que enfrentar o grande preconceito contra cantores populares no Teatro Municipal", ela disse. Alaíde temia que o Teatro estivesse vazio, mas, ao entrar no palco, a plateia estava lotada. Sucesso de público e crítica.

No auge do iê-iê-iê, vieram com uma conversa de que o que Alaíde fazia não era comercial. Que novidade. Não foi a primeira vez que ela escutou isso na vida. Queriam que ela cantasse músicas em ritmo de Jovem Guarda. Alaíde respondeu: "Obrigada, não estou à venda!" e seguiu adiante.

Em 1972, tentou cantar "Sereiarei", de Hermeto Paschoal, no Festival Internacional da Canção. Era uma espécie de lamento africano que o público brasileiro não entendeu e detestou. A música foi classificada pelo júri internacional, mas o público vaiou. Na final, dia 30 de setembro, Alaíde tentou cantar a música, mas a produção pediu que Alaíde e Hermeto deixassem o palco. Os dois foram interrogados pelo serviço de segurança. Era época de ditadura militar. Depois que os policiais foram embora, disseram que, se eles não voltassem ao palco, teriam de pagar uma multa. Alaíde voltou ao palco e as vaias não cessavam. Ela pegou o microfone para explicar por que haviam saído do palco e o problema de som, mas cortaram o áudio do microfone novamente. Alaíde ficou com muita raiva! Jogou o microfone no chão e saiu. As pessoas que antes vaiavam passaram a aplaudi-la pelo ato subversivo. (Aliás, você já tinha lido sobre isso?)

Única artista mulher a gravar no disco Clube da Esquina de Milton Nascimento e Lô Borges, Alaíde não desistiu da sua caminhada nem mesmo quando perdeu a audição. Sem poder cantar, viu artistas como Paulinho da Viola, Jorge Ben, Jair Rodrigues, Chico Anysio, Gonzaguinha, MPB4, Ivan Lins e Elizeth Cardoso se apresentarem no Teatro João Caetano para ajudá-la. Financeiramente. Quer sinal maior de admiração do que esse?

Em 1975, resolveu dar passos para fora do país e lançou um álbum produzido por Milton Nascimento com arranjos de João Donato, no Uruguai e na Argentina. Sentiu um tratamento muito melhor do que o dado pela divisão brasileira da gravadora.

As décadas passavam e, mesmo sem o holofote da grande mídia, Alaíde continuava. Em 1996, apresentou-se, com muito sucesso, no Teatro Municipal de São Paulo, interpretando canções de Tom Jobim. E, no ano de 2005, foi contemplada com o Prêmio Rival Petrobras da Música, na categoria Melhor Cantora, além de participar, ao lado de Elza Soares e Jair Rodrigues, do show "Brasil Brasileiro", apresentado em Paris como atividade de encerramento do Ano do Brasil na França.

É, Alaíde sempre descobria um caminho para chegar aonde queria. França, Inglaterra, Portugal.

Se as grandes gravadoras não a queriam, ela achava quem a quisesse. Lançou assim discos importantes em selos pequenos com produção de Thiago Marques Luiz. Nessa época, gravou o álbum "Amor Amigo" em homenagem a Milton Nascimento (e com a participação dele). Em 2008, fez uma homenagem ao amigo Johnny Alf, a quem dedicou o disco "Em tom de canção", em 2011. Também gravou o especial "A Dama da Canção" para o Canal Brasil, que em seguida foi lançado em DVD.

E, então, em 2014, finalmente realizou o seu sonho de gravar um disco autoral. "Canções de Alaíde" foi lançado pela gravadora Nova Estação. O trabalho foi uma forma de comemorar seus 60 anos de carreira. No mesmo ano, a editora Imprensa Oficial lançou, pela coleção "Aplauso", o livro "Alaíde Costa: faria tudo de novo". Escrito por Ricardo Santhiago, o livro rememorou os principais momentos de sua carreira e de seus encontros musicais.

Ao longo de sete décadas de carreira, Alaíde nunca parou de cantar, gravar ou se apresentar em shows. Melhor dizendo: Alaíde nunca deixou de seguir o que acreditava.

É uma das poucas artistas vivas que passou por todos os formatos de mídia, desde o 78 RPM, LP, K7, CD e agora o streaming. Nos últimos anos, parcerias deram novo vigor. Em 2022, aos 86 anos de idade, lançou "O que meus calos dizem sobre mim", produzido por Emicida, Pupillo (Nação Zumbi) e Marcus Preto, álbum que terá segundo volume em 2024 e foi eleito o melhor lançamento fonográfico de MPB no 30º Prêmio da Música Brasileira, com a cantora aplaudida de pé por todo o Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Atualmente, Alaíde Costa está em estúdio gravando mais um disco (o 26º da sua carreira) e já lançou dois singles do novo trabalho (um dos singles, aliás, de autoria de Marisa Monte e Carlinhos Brown). Ela está em turnê por todo o Brasil com três shows: "O que meus calos dizem sobre mim", com o repertório do último disco, "50 anos depois daquele disco com o Oscar", com o repertório do disco gravado ao lado de Oscar Castro-Neves, em 1973, e "Pérolas Negras", no qual se apresenta ao lado das amigas Eliana Pittman e Zezé Motta cantando músicas compostas apenas por compositores negros, passando por Milton Nascimento, Candeia, Jorge Ben, Jhonny Alf, Cartola, Martinho da Vila, Gilberto Gil, Tim Maia, Luiz Melodia, Djavan, Leci Brandão, Paulinho da Viola, Ataulfo Alves, entre outros.

Mais que uma cantora brasileira, Alaíde Costa é uma das poucas lendas vivas da Bossa Nova. Uma pessoa que segue seu caminho sempre olhando para frente. E que por isso merece o centro do palco, os holofotes, o barulho dos aplausos e as manchetes de jornal.

Mesmo depois de 70 anos, os passos de Alaíde continuam a levando além.
Que sorte a nossa. Vida longa a uma das mães da Bossa Nova. Vida longa a Alaíde Costa. Vamos juntos dar o espaço que Alaíde merece?

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